Há quem se vincule a um deus com cara de velho terrível; outros fazem-no ao murmúrio intangível do patrão ouro; eu, nos dias de hoje, refugio-me no afecto da minha mulher e em certos livros. Não minto. Para mim, o Paraíso inclui uma biblioteca sem cercas de arame farpado nem armadilhas visíveis, um ventre de baleia para onde algum acaso caridoso me atirou para a eternidade.
Tudo é pó, desejo e silêncio, e uma luz crua, zenital que conduz ao Valhalla dos ilustrados através de longas escadas em caracol. E o cheiro…
Porque o cheiro do livro é a quinta-essência de todos os cheiros, a geografia do herói, o trópico da quietude e dos bosques frondosos. Qualquer livro é passagem. Quando abro um volume e aspiro as suas páginas, já não estou ali.
(…) Podemos viver sem ler, é verdade; mas também podemos viver sem amar: o argumento mete água como uma jangada conduzida por ratazanas. Só quem já esteve apaixonado sabe o que o amor nos oferece e tira; só quem já leu sabe se a vida merece a pena ser vivida sem a consciência daqueles homens e mulheres que nos escreveram milhares de vezes antes de termos nascido. E que ninguém sorria perante estas linhas. Por uma vez, e sem que sirva de precedente, foram escritas exclusivamente a partir da emoção.”
In “O Revisor”, de Ricardo Menéndez Salmón, retirado daqui.
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