24 de abril de 2008

A comunhão de Lazarus


Há noites assim, frias a convidar ligar o ar condicionado do carro, onde o vento assobia como se fosse uma banda sonora de um western de Leone e a chuva cai, insistentemente, molhando os corpos, ansiosos, que se movimentam, apressadamente, rumo ao local desejado. Uma noite perfeita para relembrar espíritos inquietos onde todo o seu misticismo é único.

Há concertos assim, onde o público e o artista são um só, onde todas as vozes se juntam por vários momentos parecendo que o mundo iria terminar naquele dia, e todos juntos proporcionam momentos inesquecíveis para quem os viveu. A isso chama-se comunhão.

O pregador veio vestido com um fato elegante preto, camisa entreaberta, gel no cabelo penteado para trás, mas a não disfarçar umas entradas salientes fruto da idade, bigode farfalhudo, ao bom estilo de um galã sacana, ou talvez de um chulo com classe. Gabo-lhe o estilo. A pose. O olhar contemplador que vê um público que lhe é fiel desde o primeiro minuto. Ele vem pronto para pregar e o rebanho pronto para o ouvir. Mãos ao alto, corpo a abanar de forma esquizofrénica, pensa-se que ele vai pregar para o meio do público, mas não, ele sabe quando parar, e contempla, seduzindo quem está à sua frente. Parece pintar figuras abstractas no ar, inflamando a plateia com a sua voz tão grave e tão forte que parece-se ouvir em todos os recantos.

O pregador tem vários acólitos que o ajudam a passar as suas mensagens duma forma fantástica, com destaque a um, que tem estilo de mendigo, mas é o chamado " homem dos sete instrumentos" e o verdadeiro pêndulo, ou talvez " mestre maior", duma banda que debita um som duro, cru, mas muito intenso.

Na segunda música grita desenfreadamente " We're gonna have a real good time tonight " e à quarta música exige a presença de Lazarus com uma raiva tal que até o espírito evocado tem medo dele, após ter cantado uma " murder song" onde pôs a plateia a erguer para o céu a sua " Red Right Hand ".

A partir daí, todos estavam convidados para se juntarem à sua maravilhosa pregação, sempre intensa, não desiludindo os seus fiéis que corresponderiam com prazer e dedicação extrema, e procuravam imitar a dança, tão esquisita como encantadora, que viam o pregador fazer no palco.

Há momentos da pregação mais positivos do que outros, momentos que passam e logo remetemos ao esquecimento e outros que os iremos guardar no baú das recordações para nunca mais lá saírem. Essa inconstância, embora não se notasse muito, é normal devido à rodagem das preces, acredito que depois de mais rodado o material, as pregações serão ainda mais intensas e devastadoras .

Desde a música onde invoca uma mulher australiana de nome " Deanna" que termina quase abruptamente e onde o público gritou bem alto as últimas palavras, até uma " The Ship Song" maravilhosamente arrepiante, passando por uma " Let Love In" vibrante, a frenética " Midnight Man ", a balada envolvente de " Jesus to the Moon ", uma "" Stagger Lee" irreconhecívelmente bela, uma " Straight to You" aclamada a sete ventos por todos, ou, já quase no final, uma " We call Upon the Author" com momentos dançantes pensando que estamos, por momentos, numa discoteca gigante, tudo momentos únicos e irrepetíveis, pelo menos com aquela densidade.

Um dos, poucos, momentos negativos surge logo no primeiro encore quando o pregador se senta ao piano, lança os primeiros acordes de " Into my Arms" e conclui que afinal não poderá tocá-la por não ter um instrumento necessário, ao que ele reage irritadamente,desiludindo um público que já se preparava para gravar um momento que tinha tudo para ser inesquecível e comovente .

Lazarus, esse espírito evocado várias vezes, andou por lá, bem no meio do público, a dançar freneticamente, abanando a cabeça e fechando os olhos para que a música entranhasse dentro de si e o levasse para outra dimensão.

E, surpresa, deixou uma mensagem, neste caso, em forma de água, um elemento necessário em celebrações. Ele andou pela casa de banho dos homens e, provavelmente, abriu as torneiras de tal maneira deixando-as a verter água que acabou por inundar o chão do local da pregação, obrigando a que, quem passasse por lá, arregaça-se as calças para não se molhar todo e andasse, literalmente, no meio de uma pequena amostra de um rio.

Lazarus é um sacana. Mas o seu pregador é o máximo. Obrifuckingado Mr. Cave.

3 comentários:

Anónimo disse...

Falhei o concerto de Lisboa e confesso que me arrependi. O último álbum está muito bom, na linha habitual do Cave.

Gostei da crónica sobre o concerto. A merecer mais atenção.



Abraço!

Maria del Sol disse...

Apesar de não ter ido, acho que é motivo de orgulho para nós, fãs portugueses, ter hornas de início de digressão do grande Cave. Mesmo que tal signifique uma ou outra falha técnica, que suponho que sejam facilmente relativizadas pelo carisma deste frontman. :)

Beijinhos e bons feriados!

Ema disse...

lindo, lindo, lindo. milhões de invejas.